Parte-se do complexo para o simples: a ópera pode não ser o objecto artístico mais fácil de trabalhar, mas por vezes o segredo está, precisamente, na simplicidade com que se aborda o enredo e a sua linguagem. No fim de contas, é isso que pode fazer a diferença para os públicos que pela primeira se aproximam desse universo, também ele em constante mudança.
A premissa foi fundamental para a criação de “O Anel do Unicórnio”, ópera em miniatura, que juntou um libreto de Ana Lázaro à música composta por Martim Sousa Tavares e à encenação de Ricardo Neves-Neves. O desafio a que se lançaram chegou pela parte do LU.CA, em Lisboa, onde o espectáculo está em cena a partir do próximo dia 3 de Dezembro. Para já, está até dia 27 no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.
Mas regressemos à sua feitura. Depois de já terem colaborado na peça “Menina do Mar”, Ricardo Neves-Neves e Martim Sousa Tavares voltaram de novo a atenção para o público infanto-juvenil, na produção de um espectáculo que fosse igualmente um incentivo à literacia artística. Para isso juntaram-se à dramaturga e escritora Ana Lázaro, que pela primeira vez assina um libreto de ópera. O resultado é uma comédia de trejeito lírico, que abraça tanto elementos clássicos da ópera, como outros mais vinculados à contemporaneidade.
Em palco, três cantores, um actor e um ensemble de músicos dão conta da história de uma família que vive, precisamente, dentro de uma ópera. Pedro Patê, rapaz enfadado por essa mesma condição de vida, é filho de dois cantores e está farto de ouvir ininterruptamente árias, cavatinas, intermezzi, e de ser arrastado para as aventuras épicas, intrigas e tropelias do seu pai, Bellini Bel Canto (um ex-barbeiro de Sevilha), e da sua mãe, Faustina Balão, uma verdadeira diva barroca. Ao contrário deles, Pedro Patê sonha com a possibilidade de vir a ser ilusionista, mas a trama adensa-se quando um dia, o mesmo em que os pais celebram as bodas de prata, o gato de estimação, Don Giovanni al Latte, desaparece misteriosamente.
Em diálogo com os clássicos
A esta ópera, ambientada no que seria um período barroco mais ou menos onírico, não faltam as habituais cabeleiras de caracóis a metro, os trejeitos do género na representação e as vozes operáticas dos cantores Cátia Moreso, Sílvia Filipe e André Henriques. No que à acção dramática e música diz respeito, a cena fica completa com o actor André Magalhães, acompanhado pelo conjunto de músicos David Silva, Ana Aroso, Francisco Cipriano, Mrica Sefa, Miguel Menezes, Helena Silva e Vasco Sousa.
Profundamente enraizada naquilo que é o repertório clássico da ópera e em diálogo com ele, a nova criação do Teatro do Eléctrico pretende ser uma porta de entrada para a ópera e para outros géneros artísticos que mais dificilmente conquistam novos públicos. “Podemos assumir com algum grau de certeza que todas as crianças que vão ver o espectáculo vão ver pela primeira vez uma ópera. O grande desafio é que seja uma boa primeira experiência, porque, como sabemos, são muitas vezes esses momentos que acabam por definir a relação das pessoas com determinadas formas de arte”, realça Martim Sousa Tavares.
Para condensar essa ligação, contribui ainda o facto de a criação assumir também um lado tecnológico, que capta facilmente o olhar de qualquer espectador no presente: o cenário móvel, a que se juntam pequenos robôs que vão desenhando ilustrações que acompanham as cenas e facilitam a apreensão da narrativa.
A preocupação da linguagem foi, como destaca Ana Lázaro, outro aspecto essencial na criação do libreto, que se pretendeu simples, mas exigente. “A ópera não é identificada como um objecto simples e muitas vezes, neste tipo de abordagens, tende-se a simplificar muito e a empobrecer até a linguagem que se dá às crianças e ao público mais jovem. Mas acho que é importante experimentarmos algo sem cair num certo facilitismo e, pelo contrário, que possa ser motivador de outras experiências.”
Em “O Anel do Unicórnio” há, por tudo isso, um universo de referências que, embora possa fazer pouco pelo espectáculo visto aos olhos de uma criança, lhe acrescenta complexidade nas entrelinhas, ultrapassando a leitura mais superficial. É uma ópera que não escolhe idades, que pode maravilhar miúdos e voltar a levar graúdos a essa obra de arte total que, no fim de contas, está bem viva e de olhos postos no futuro.
