Conte-me um bocadinho da sua vida. Nasceu na ilha de Santiago, em Cabo Verde, e aos seis anos foi para a Holanda?
Essa história começou de uma forma um pouco triste. O meu pai faleceu, e ele trabalhava na Holanda. Ficou doente, faleceu e fomos ao enterro. Fomos todos e a minha mãe decidiu levar-nos todos para a Holanda, porque o meu pai já tinha comprado casa em Roterdão. Ficámos na Holanda mas, depois, houve logo um período de consolação e de recuperação porque, quando cheguei à Holanda, vi aquele álbum do Michael Jackson, “Thriller”, que foi o grande sucesso dele. Apaixonei-me tanto, senti-me inspirado, queria também seguir aquele caminho de Michael Jackson. Imaginei-me logo em cima do palco a alegrar o povo.
Isso logo aos seis anos?
Exacto, com seis anos.
Nessa altura, já pensava que o seu futuro ia ser a cantar?
Imaginei-me em cima do palco. Quando vi Michael Jackson, imaginei-me também eu em cima do palco a cantar para multidões. Queria também seguir aquele caminho e, primeiro, comecei a imitar Michael Jackson; mais tarde, fiz vários shows de imitação de Michael Jackson. Comecei até a ganhar dinheiro, muito jovem, com imitações. E, depois, participei num programa que se chamava “Chuva de Estrelas”...
“Sound Mix Show”?
Isso. Em Portugal, penso que se chama “Chuva de Estrelas”.
Mas foi no “Sound Mix Show” que percebeu que tinha jeito para cantar e para fazer disto vida?
Não, não, antes. Mal vi Michael Jackson, eu queria seguir... é incrível, mas já queria seguir caminhos de artista.
Há pouco disse que já ganhava dinheiro. De que forma?
Como imitador de Michael Jackson, eu cantava sempre três músicas. Já aos 11, 12 anos fazia minishows em que recebia um cachê a imitar o Michael Jackson.
Em televisão?
Não, em bares, cafés, restaurantes, hotéis, nos bailes também. Tinha 13, 14 anos. Michael tinha fama; então, as pessoas queriam muito ver uma pessoa a imitar músicas dele. Tinha muitos pedidos.
Mas nunca perdeu a sua ligação a Cabo Verde.
Não. Depois do “Sound Mix Show”, toda a gente dizia que eu era o Michael Jackson da Holanda, e isso estava a aborrecer-me. E, então, eu respondia: “Não sou o Michael Jackson, já existe um Michael Jackson. As pessoas têm de me conhecer como o Gil.” Já tinha começado a escrever músicas, primeiro, em inglês, mas um dia decidi escrever uma música em crioulo porque as raízes africanas estavam a puxar-me muito, e escrevi. Tinha um manager que só me disse: “Essa música é muito boa, quero lançá-la para fazermos um vinil.” Combinámos, então, que eu faria mais três ou quatro músicas.
Sempre se sentiu 100% cabo-verdiano?
Eu criei um estilo que se chama Cabo swing. A base é a música tradicional de Cabo Verde, mas com mistura de pop, influência pop. Essa mistura é muito feliz, porque é uma mistura pop de Michael Jackson e, principalmente, da influência de Michael Jackson, mas conta com música afro-Caribbean. Ficou um estilo muito feliz. É uma nova identidade, porque eu sou um cidadão do mundo. Sinto-me um cidadão do mundo e Cabo swing representa isso mesmo. Não estava a encontrar o que queria na música tradicional de Cabo Verde, mas também não me estava a encontrar na música pop. Uni esses dois estilos e ficou uma nova identidade.
E em que momento sente que é uma verdadeira estrela em Cabo Verde e no mundo lusófono?
Quando fiz a primeira música em crioulo, tive muito sucesso logo ao início. Comecei a gostar desse carinho todo que o povo me estava a dar, principalmente o povo cabo-verdiano, mas, depois, lancei o segundo álbum, que incluía músicas em inglês, e tinha uma música que se chama “Jantar”. Foi em 1993, tinha 17, 18 anos, e depois lancei aquela música e foi um sucesso grande em todos os PALOP. Senti-me mesmo bem.
Sente que a sua carreira tem sido importante para valorizar a cultura africana?
Sinto muito isso, porque eu tinha uma música no segundo álbum que se chama “Nós, Africanos”, e é uma música que proclama o orgulho de ser africano. Falo de que temos ritmo no sangue. Quase sem nos darmos conta, começamos a dançar e a mexer o corpo, estamos a dançar e mexer, somos todos africanos. E, quando digo que somos todos africanos, quero dizer que África é o berço da humanidade. Então, afinal, somos todos africanos, mesmo os que não são africanos.
Como africano e expoente da música africana, sente que a cultura africana é desvalorizada no mundo ou, pelo menos, não tem a importância que merecia?
Aí há um ponto. Como eu disse há pouco, África é o berço da humanidade. Mesmo no que diz respeito à música, tudo vem de África e, depois, claro que se desenvolve e evolui, mas a base é de África, os ritmos, tudo. O mundo precisa de ficar mais consciente dessa riqueza e de onde vem.
Em Cabo Verde é chamado de “Nos líder”, o nosso líder. Isto é apenas um movimento ou pode fazê-lo pensar noutra coisa? Pensa ir além da música?
Eu sei que sou uma personalidade. Além de músico, sou uma personalidade, porque passo mensagens nas minhas músicas. Mensagens de fé, mensagens de optimismo...
De amor?
Claro, de amor, em primeiro lugar, de união também. “Nos líder” tem uma mensagem muito espiritual. É uma música que muita gente não percebe muito bem o que eu quero dizer. É bom ter-me posto essa pergunta sobre o movimento porque eu acho que ainda não aproveitei. Há ainda mais a materializar sobre a mensagem que passo nessa música e que me deu essa alcunha. Esse é mesmo um movimento que vai ficar. Deixe-me explicar um bocadinho. É uma música muito espiritual, porque fala do mal e do bem, mas em que a última palavra é sempre relacionada com o bem. Estou a falar sobre mim mesmo, como eu sou líder? Não, nós todos somos líderes, o caminho do bem sempre vence. A última palavra é do bem. Quem está no caminho do bem está a liderar e essa liderança começa contigo mesmo, a tua própria cabeça, estás a liderar com a tua própria cabeça, estás a liderar isso. Então, por isso, somos todos líderes e precisamos de ficar mais conscientes de que nós temos a realização na mão e criamos de dentro para fora. Podemos criar um paraíso ou podemos criar um inferno.
Mas, tendo em conta esse movimento, pensa ser mais do que um músico. Já pensou em ser político?
Não, não, não penso nisso. Muita gente costuma falar-me disso mas, na minha cabeça, não me vejo como um político, porque eu sou um músico, sou um artista e quero mostrar ao mundo como a música pode fazer a diferença na vida de cada um. Eu quero consolar pessoas com música, quero mostrar que a música é uma medicina, um remédio, uma terapia, ajuda-nos a processar qualquer trauma ou tristeza. Viver com a música é uma medicina.
Está a festejar os 30 anos de carreira. Qual foi o espectáculo que mais lhe agradou ou o estádio onde gostou mais de actuar?
A vida tem altos e baixos. Na minha carreira tenho quase só altos, mas houve um ponto muito baixo, o meu acidente.
Em 1999?
Exacto. Depois desse acidente, que foi tão emocionante para o mundo PALOP, lancei aquela música “Obrigado”. Em primeiro lugar, a Deus, por me dar uma segunda oportunidade de continuar a fazer música, e ao povo em cima do palco. Sou grato por isso, também por todos os fãs que me deram força para continuar. Respondendo à sua pergunta, quando actuei pela primeira vez em 2003, depois do acidente, fiz um tour e, quando fui para Cabo Verde, foi mesmo espectacular. Nunca se tinha visto tanta gente num espectáculo em Cabo Verde. Foi na Praia, Festival de Gamboa.
Há muita gente que não percebe como sobreviveu da queda de um 8.º andar quando filmava um videoclipe em Dakar, no Senegal. Pode explicar um bocadinho como foi esse acidente?
Posso explicar um pouco, mas estou a escrever, neste momento, um livro que espero poder lançar no próximo ano, porque já estou quase no fim. Quero fazer mesmo um bom livro e nele explico em detalhe o que aconteceu. O que posso dizer sobre isso para esta entrevista é que caí de um 8.º andar. Não me lembro bem como foi. Agradeço a Deus porque foi um milagre. Acredito muito em Deus e acredito que não era a minha hora e, por isso, não morri. É incrível alguém sobreviver de uma queda de um 8.º andar. Agora posso rir... mas foi um tempo doloroso para aprender a andar. Perdi a parte de baixo da minha perna esquerda, tenho uma prótese, mas eu sou optimista. Cantei depois uma música em que parte da letra mencionava que a vida obrigou-me a dar um passo atrás para dar dois à frente.
Vamos esperar, então, pelo livro. Nos países em que o português não é a língua oficial, sente que as pessoas entendem e vibram com a sua música?
Elas vibram, vibram. Quem ouve gosta porque sou muito forte na melodia, até tenho uma filha chamada Melodia. Mas a melodia é algo universal. A letra é um extra. Boa música alimenta quatro aspectos de um ser humano: intelectual, emocional, espiritual e físico. Se consegues alimentar estes quatro lados, tens uma música rica que fica para sempre. Música é, principalmente, emoção. Se consegues alimentar a parte emocional das pessoas, já é muito bom. Mas a vertente espiritual também é muito importante. Quando fazes uma música com amor, a pessoa sente...
É o próprio que compõe as suas músicas?
Muitas delas, sim.
Como é o seu método? Fica sozinho, isola-se?
Até agora, foi assim mesmo, sozinho, mas sinto que estou a mudar porque estou a trabalhar com esta nova geração, e esta nova geração funciona de uma forma muito diferente da maneira como eu fazia música. Eles interagem mais: eu escrevo uma parte, outro escreve outra parte. Dou melodia, outro dá outra melodia. E tudo fica unido e é bonito, mas eu não trabalhava assim. Eu ficava sozinho atrás do piano ou da guitarra, apanhava as notas, compunha harmonias e começava a escrever. Tenho uma música, “Verdadi é só um”, e eu explico nessa música o processo, esse processo, o processo de espírito que fala comigo, inspiração. A palavra inspiração tem espírito nela. Quando estás conectado com o divino, com a força divina, ela dá-te mensagens, melodias e boa música.
Falou de uma nova geração. Sente que é uma inspiração para uma nova geração de cantores de Cabo Verde e até dos PALOP?
Sinto, sinto, porque eles próprios dizem-me que eu sou a inspiração deles. Sinto-me orgulhoso e grato também por isso.
A 17 de Março vai ter um concerto no Coliseu dos Recreios. Vai ser um grande momento de satisfação para os cabo-verdianos e africanos que estão em Portugal e até para os portugueses que gostam da sua música?
Sinto, sim. Este passo que estou a dar vai fazer uma grande diferença para coisas que estão pela frente. O Coliseu é uma sala de prestígio e, para muitos, quando tu fazes o Coliseu, parece que te estás a confirmar. Aqueles que não te conhecem ainda, quando vêem que enches o Coliseu vão dizer “ele é um verdadeiro artista”. Tenho uma enorme satisfação em encher o Coliseu e, depois, fazer um grande show. Acredito que vamos fazer um grande show.
Sabemos que vai ter como convidados Dino D’Santiago, Djodje, Nelson Freitas e Gil & The Perfects. Que mais surpresas vai ter nesse espectáculo?
Se eu disser, deixa de ser surpresa. [risos] Soraia Ramos, DJ Nos Manera, que é dos anos 90, altura em que eu comecei. Nos anos 90, também houve um enorme movimento de música, principalmente da Holanda. Era tudo produção da Holanda, música da Holanda que fazia sucesso nos PALOP. Até agora, em Angola, há muita gente que agradece. “Nós estávamos em guerra, mas vocês deram-nos muito força”, dizem-me Também estou grato por isso.
Sente-se muito querido nos outros países de língua oficial portuguesa?
Sim, sinto-me, sinto-me. Lembro-me que a primeira vez que fui à Guiné-Bissau... foi incrível, foi bonito, porque eu saí do avião e já tinham um tapete tradicional, e isso, para eles, tem muito significado. É uma cerimónia normalmente reservada a reis e chefes de Estado, e eles fizeram esse protocolo com um pano específico que tem um valor muito grande para eles, não só em termos culturais como religiosos, um pano que eles consideram bastante.
Tinha essa noção de que era tão querido na Guiné-Bissau?
Não, não tinha. Foi uma surpresa para mim... mesmo a multidão no aeroporto. Foi lindo, foi lindo. E, na altura, até disse: “Em Cabo Verde, que é a minha terra, nunca fui recebido assim.”
Nos outros países, como Angola e Moçambique, também o recebem entusiasticamente?
Sim, sim. Nestes 30 anos passei por todos os PALOP e mesmo em Portugal também, mas ainda não consegui muito tocar os portugueses. Não sei se tem a ver com língua, porque eles não percebem muito bem o que estou a dizer. Mas este passo que estamos a dar, acho que vai abrir uma porta para os portugueses me conhecerem também, para saberem qual é a mensagem que tenho a dar.
É a última pergunta: já passaram 30 anos, como vão ser os próximos 30?
[risos] Já entrei num novo capítulo e muitas pessoas pensam que o Gil com esta carreira de 30 anos já deu tudo, mas eu acho que elas estão muito erradas. Sinto que ainda tenho muito, muito a dar. Não sou um artista exclusivo para os PALOP, sou um artista do e para o mundo - não só como músico, mas também como personalidade.
O melhor está para vir?
O melhor está para vir.