“Expedição ao mais fundo de nós mesmos” é como o escritor brasileiro Campos de Carvalho assegura ter descrito, “através de gestos e resmungos”, a sua novela ao primeiro secretário da embaixada da República Popular da Bulgária. Sendo a verosimilhança de tal episódio aquela que cada leitor entender por bem atribuir, o depoimento do autor de “O Púcaro Búlgaro” fica como um aviso de que não se deverá esperar um roteiro das belezas bizantinas do país dos confins do leste da Europa, ainda mais distante caso visto a partir do Brasil e nas circunstâncias geopolíticas de 1964, ano em que chegou às livrarias.
“O Púcaro Búlgaro”, editado em Portugal pela Tinta-da-china, na colecção de humor coordenada por Ricardo Araújo Pereira, é um exercício de surrealismo que decorre quase por inteiro num apartamento no Rio de Janeiro. E nasce de uma premissa sui generis: o avistamento de um púcaro búlgaro no Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia, no Verão de 1958, lança o autor na “cada vez mais nebulosa disputa geográfica” de apurar se a Bulgária existe de verdade.
Se “O Outono em Pequim”, de Boris Vian, não decorria nessa estação ou na capital chinesa, também a acção de “O Púcaro Búlgaro” ruma à maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, onde “búlgaros, berberes, aramaicos e outros levantinos” oferecem milhões para a obra não ser publicada, “pelo menos até ao começo do século XXI, quando certamente o mundo já não terá mais sentido”.
Em 2023, o livro mantém inalterada a destreza da palavra e o mergulho em apneia no absurdo. “Acabo de pôr o anúncio no jornal. Expedição à Bulgária. Procuram-se voluntários”, explica o narrador, que coloca o dito anúncio na página da necrologia, “que é a mais lida devido aos muitos inimigos que temos.”
Logo aparece um “professor de Bulgarologia”, de seu nome Radamés e natural do Ceará; “um tal de Pernacchio”, para quem não é a Torre de Pisa, e sim o resto da cidade, que está inclinada; o Ivo “que viu a uva”; um Expedito “não sei do quê” que ganha o hábito de ir ao cinema com Rosa, solícita empregada do protagonista; e ainda um “marinheiro fenício que se recusou a declinar sua verdadeira identidade”.
Depressa se descobrirá que Radamés acaricia um gato que talvez seja o dorso da sua mão esquerda, “bastante peluda e irritadiça”, e que haverá motivo para lá de cinéfilo para os desaparecimentos de Expedito e Rosa. Quanto ao resto, “come-se Bulgária, respira-se Bulgária, bulgariza-se em suma”. Ou não.