Verão de 1939. O escritor polaco Witold Gombrowicz (1904-1969) deixava a Polónia a bordo do transatlântico Chrobry, no que julgava que seria uma breve viagem como representante da comunidade cultural polaca na Argentina. Longe de ser uma figura ilustre à data, autor de uma colecção de contos, de uma peça de teatro e do romance “Ferdydurke” (1937), posteriormente reconhecido como uma obra-prima da literatura mundial, era, ainda assim, visto como figura vanguardista de proeminência na Europa.
Uma semana depois de chegar a Buenos Aires, a Alemanha invadiu a Polónia, na ignição da Segunda Guerra Mundial. Já a bordo do transatlântico para a viagem de regresso, Gombrowicz precipitou-se “no último minuto” rampa abaixo, em direcção ao cais. Assim, de impulso e com uma boa dose de incerteza - como alguém em busca de se abandonar a si mesmo para dar início a um percurso quixotesco num lugar “distante de tudo, exótico e indulgente, indiferente e entregue à sua própria quotidianidade”, como descreve -, tomava a decisão de permanecer na Argentina.
Essa solução temporária tornou-se rapidamente um exílio auto-imposto que duraria por duas décadas. Na Polónia, os livros que a partir da Argentina foi publicando foram proibidos pelos nazis e, depois de 1945, pelo regime comunista, que entretanto se instalou debaixo da orla soviética.
Desmoralizado e desesperado, o escritor propôs, em 1952, à revista polaca Kultura, com sede em Paris, a escrita de um diário que passou a publicar uma vez por mês. A perda de identidade cultural e o estalinismo que dominava o seu país de origem, e ao qual se opunha veementemente, rogaram-lhe a condição de escritor marginal. As páginas do diário tornavam-se, assim, espaço de oposição à pátria desses “pobres que se gabam de a avó ter uma quinta e de costumar ir a Paris”.
Num tom muitas vezes virulento, Gombrowicz viola as regras do próprio género em que escreve, criando uma obra singular em que tudo cabe: ensaios, notas curtas, tiradas polémicas e confissões sobre uma miríade de assuntos que vão de eventos políticos à literatura e à certeza da morte.
Dia a dia, o autor de “Pornografia” (1960) reflecte sobre o mundo de forma enciclopédica. Escreve sobre o marxismo, sobre a Igreja Católica, sobre os promotores do existencialismo (Camus e Sartre, que se contentavam em contar com Gombrowicz como uma espécie de embaixador involuntário), sobre o destino infeliz da Polónia ou sobre o exílio, primeiro na Argentina, mais tarde em França. Quaisquer que sejam, as confissões que preenchem estas páginas são tão filosóficas quanto pessoais - embora, no universo de Gombrowicz, as duas nunca possam ser nitidamente separadas.
Quanto à arte e à política, vai mais longe: critica a antinomia criada entre o Ocidente e o Leste, uma “concepção de mundo simplificada”, e a visão de um “Homem Novo”, subordinado à colectividade humana, criada para lá da Cortina de Ferro. A arte, essa, devia “destruir os conceitos de hoje [o seu tempo] em nome dos conceitos vindouros” e abandonar a ideia do serviço às ideologias.
Rita Gombrowicz, a sua viúva, que assina o prefácio, descreve “Diário”, que a Antígona edita agora, pela primeira vez, em Portugal, como uma “autobiografia em movimento, ensaio e obra de arte”: “A sua obra mais pessoal, mas também a sua obra mais universal.” Tida como uma obra-prima pela generalidade da crítica, é acima de tudo um tratado sobre a identidade e a condição de um homem que olha de fora para dentro: “As pessoas lá, na Polónia, mal existem... existem apenas até certo ponto... trata-se de uma existência frágil e preliminar.”
O escritor que se descreve como “terrivelmente polaco e terrivelmente rebelde contra a Polónia” assume uma posição de tensão face ao seu país de origem, num diálogo aberto, paródico e irónico, com uma rejeição aberta dos sentimentos nacionalistas, o que explica que a obra tenha circulado clandestinamente na Polónia e só depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, tenha sido publicada sem cortes de censura.
Na Argentina, a pátria adoptiva onde escreve este primeiro volume de “Diário” e onde vive uma vida austera, não se integra nos círculos intelectuais, mas cultiva a permanência prolongada como ascese, exercício de estilo e de contracorrente. Sem nunca deixar de ser comentador de si próprio, assume para lá da linha do Equador um papel renovador na literatura polaca: “Não anseio por representar mais nada além da minha própria pessoa; no entanto, a função de representante é-nos imposta pelo mundo contra a nossa vontade.”
