Vamos começar pelo seu novo projecto, “Contado por Mulheres”, em que faz parte do telefilme “Jogos de Enganos”. Fale-nos sobre isso.
É um projecto muito interessante que me prendeu logo pela característica única de ser uma iniciativa em que todos os filmes são realizados por mulheres. Sou a favor da inclusão e de combater alguns estereótipos. Vivemos num mundo um bocado dominado por homens. É sempre positivo que se abra mais o espectro das artes. Todos os filmes são baseados em romances portugueses de autores conhecidos. O meu é baseado no “Pequenos Burgueses”, do Carlos Oliveira. É uma farsa cómica sobre duas famílias, uma rica, que vai à falência; são donos de um pomar e as maçãs apodrecem. Então estão à procura de salvar a família e eu faço o papel de um homem que é um bocado charlatão que anda a saltar de mulher em mulher, mulheres mais velhas, e acaba por se ir embora com dinheiro e coisas. E vai de um lado para o outro a tentar dar golpes. No caso do filme, a história passa-se em Alcobaça, mas na história original não é especificado o sítio. Eles decidiram retratá-la em Alcobaça até porque todos os filmes têm acordos com municípios diferentes do país - serve também para descentralizar um bocado de Lisboa e do Porto. Os filmes são todos filmados em sítios diferentes. O nosso foi em Alcobaça. Foi óptimo filmar lá, uma terra óptima que nos recebeu superbem. É um filme de época, passa-se na altura da guerra, 1942. Foi um grande desafio. Fazer coisas de época obriga-nos a pesquisar um bocadinho, a trabalhar de uma forma mais interessante do que fazer um papel normal. Obriga-nos a ir ver como eram os costumes da altura, como se falava, é diferente. E, depois, é uma comédia, que é sempre um estilo que me dá prazer, porque é difícil, é mais desafiante.
Teve de estudar muito?
Por acaso, não tenho problemas a decorar textos. Tenho facilidade na memória visual; então, isso é sempre algo que não me aflige muito mas, como em qualquer outro trabalho, gosto sempre de fazer uma boa pesquisa, de trabalhar o personagem o máximo possível e de ir buscar o máximo de referências possíveis. Uma coisa que faço quase sempre é tentar ver algumas pessoas próximas que se aproximem da personalidade daquele personagem. Isso ajuda-me a tentar ter uma ideia mais concreta do personagem em si. E depois, nós, felizmente, tivemos a oportunidade de fazer ensaios com a equipa e com o realizador e com o resto do elenco, e de falar com o autor da adaptação do romance. Foi rodado no Verão de 2021.
O que podem contar as mulheres que os homens não podem?
[risos] Eu acho que nada. Podem contar as mesmas histórias. Talvez tenham perspectivas e abordagens diferentes, mas acho que todos estes filmes podiam ter sido realizados por homens e seria igualmente bom. Neste caso, a iniciativa prima mais só por uma questão de abrir o mercado. Toda a gente sabe... está um bocado enraizado na nossa sociedade: à partida, as mulheres têm menos oportunidades, os números dizem um bocado isso. Recebem menos, supostamente nos mesmos trabalhos, e situações do género - coisas que andamos a tentar combater. Eu acho que a arte e a cultura têm como dever ser linha da frente nesse combate e dar o exemplo, e mostrar como se deve fazer diferente e falar sobre isso. A escolha de terem sido as mulheres não foi porque elas podiam realizar melhor ou pior, é mesmo só como iniciativa para mostrar que as mulheres também têm um grande lugar na arte, na cultura e na sociedade de um país e que se deve fomentar essa participação das mulheres de forma igual. Não acho que elas devam ter mais ou menos participação. Tem de haver igualdade mas, infelizmente, não vivemos ainda uma fase em que as coisas sejam iguais. Por isso, acho importante termos estas iniciativas. A realizadora do meu filme, a Rita Barbosa, fez um excelente trabalho, como qualquer outro realizador homem ou mulher teria feito.
O machismo ainda vigora na nossa sociedade, em especial na cultura?
Infelizmente, sim. Acho que cada vez menos. As gerações mais novas têm um bocadinho mais de noção ou já não diferenciam tanto, já não vêem o preconceito da mesma maneira, mas ainda não podemos deixar de falar destes temas porque ainda há muita gente que não compreende. Não sei se especificamente na cultura; na cultura, acontece, mas acho que acontece em quase todos os ramos da sociedade. O machismo é uma coisa que se deve combater. A questão não é os homens ou as mulheres terem mais importância ou oportunidades. A questão é a igualdade, a igualdade de género, dentro dos limites óbvios que ser homem ou ser mulher implica, porque há diferenças óbvias entre um género e outro. Agora... acesso às mesmas coisas, os mesmos direitos, os mesmos deveres, etc., acho que se deve lutar por isso. Uma sociedade precisa que todos sejam iguais: homens, mulheres, crianças, adultos, raças e etnias diferentes, tudo. Devemos todos olhar mais uns para os outros de uma forma igual. Somos todos seres humanos e não devíamos andar a atacar-nos só porque somos diferentes na cor da pele ou no que quer que seja.
Tem uma carreira com muito teatro. O contacto directo com o público é algo que marca indelevelmente o género por comparação com as novelas ou o cinema?
Sem dúvida que isso é uma das características que tornam o teatro uma actividade diferente das outras no que toca à representação. O contacto directo com o público, apesar de na maior parte das vezes existir uma quarta parede imaginária no palco - não existe propriamente uma interacção, ainda que dependa das peças... Não deve haver uma comunicação directa entre o público e o actor mas, para nós e para eles, é uma experiência completamente diferente do que estar sentado no sofá a ver televisão ou do que nós filmarmos uma coisa e passado um ano ou dois é que vai para o ar. Além de que... sim, a presença do público, as respirações, as reacções no momento... todas as noites é diferente, não há um espectáculo igual a outro, apesar de o texto e as marcações e os figurinos serem os mesmos. O meu estado de espírito é diferente de noite para noite, o público que está lá é diferente de noite para noite, e isso faz com que seja única e irrepetível cada representação. E isso, para mim, é impagável. E as reacções no momento são das coisas que mais alimentam um actor em cena. Guiam um bocado o espectáculo, é como se fossem mais um personagem. O público é um personagem novo que está ali todas as noites. Mas há outras características que diferenciam muitas práticas de representação. Uma delas é que, no teatro, somos nós que controlamos o arco emocional, o percurso do personagem. Passamos meses a ensaiar e, depois, estamos um mês ou dois em cena. E vamos sempre mudando um pouco o nosso trabalho, enquanto, no cinema, quem manda é o realizador, quem decide é o realizador. Filmamos uma cena como ele nos indica mas essa cena ainda vai passar por um processo de pós-produção, vão mudar uma data de coisas e, afinal de contas, até pode ser que ele mude a cena toda sem ser preciso voltarmos lá. A única representação real e verdadeira de um actor, do início ao fim, é ao vivo, no teatro.
Dá-lhe mais prazer fazer teatro?
Não é uma questão de mais prazer, eu gosto de fazer tudo. É onde eu acho que o actor se sente mais presente, mais completo. Mas tenho igual prazer a fazer cinema. São trabalhos diferentes, trabalham-se coisas diferentes
Como actor, como viu as queixas de algumas companhias que perderam subsídios atribuídos pelo Estado? Sente que o teatro está a perder algum protagonismo em Portugal?
Não estou muito por dentro desse concurso mas, de um modo geral, o que posso dizer é que o teatro, e a cultura em geral, continua muito aquém. Há sempre mais dinheiro para outras coisas. Temos investimento privado nas televisões, excepto a RTP, mas o teatro é sempre um parente pobre da cultura em Portugal. Existe uma sensação generalizada de abandono da parte das pessoas que trabalham no meio. Estamos sempre um bocadinho aquém daquilo que se esperava, há muito tempo já. Andamos há anos para ter 1% do Orçamento do Estado (OE). Um por cento é uma quantia muito pequena comparada com a dos outros sectores. Não vamos comparar a cultura à saúde ou à educação, mas estamos a falar de 1%. É o que andamos a exigir há anos e não conseguimos. Estamos a falar de 1% para a cultura toda. Não é só para o teatro, é para o cinema, para a pintura, para a dança, para a escultura, para tudo.
Disse que não queria comparar a cultura com a educação, mas a cultura também é educação...
Claro. Não estou por dentro, mas imagino que o orçamento para a saúde de um país seja uma coisa muito complexa: a quantidade de hospitais, centros de saúde, o investimento para manter um Serviço Nacional de Saúde a funcionar... A educação, a mesma coisa: a quantidade de escolas, de universidades públicas, etc. Imagino que isso suga muito dinheiro no OE, e está tudo bem, mas a cultura é uma ferramenta importantíssima para tudo, não só para a educação. Serve para educar não só as crianças e os jovens, como adultos e toda a gente. Toda a sociedade beneficia da cultura. Eu acho, e muita gente partilha da minha opinião, que o investimento na cultura é fundamental para um país andar para a frente, como se vê, aliás, noutros países semelhantes ao nosso na Europa. A França tem uma cultura muito mais desenvolvida e um investimento muito maior. Aqui ao lado, a Espanha também tem muito mais dinheiro designado para a cultura, porque me parece que são sociedades que compreendem a importância que a cultura tem para a sociedade avançar. Sem cultura, não temos história, não temos passado, não temos futuro. A cultura serve para fazer pensar, para fazer a sociedade avançar. Para mim, é tão importante como a ciência. A cultura é uma espécie de ciência ao nível do pensamento crítico, ao nível da evolução da nossa espécie e da nossa sociedade. Se não houvesse cultura, nós não teríamos obras de arte inacreditáveis que marcam para sempre a nossa história colectiva. Não teríamos músicas de compositores incríveis que são obras de arte que nos fazem rir, chorar, sonhar, avançar na vida.
Perante o que disse, como é a vida de um actor em Portugal? Complicada?
Depende. Há actores que não devem ter vidas muito complicadas e há outros que devem ter vidas mais complicadas. Depende de muitas coisas. Depende do percurso, da sorte. Regra geral, não é uma vida muito estável. Há muita gente que tenta ser actor e que fica pelo caminho porque não conseguiu cumprir os objectivos básicos do início de uma carreira. Tenho uma teoria que mais ou menos comprovei: são precisos dez anos para se formar um actor. Formar talvez não seja a palavra certa porque um actor nunca pára de se formar, está a vida inteira a aprender, a crescer e a evoluir. Não se conclui uma formação. E também, quando digo formação, não digo formação académica porque não acho que seja decisivo ter uma formação académica, apesar de achar muito importante. Não acho que seja preciso para ser actor ter um curso porque há muitos actores que não têm curso nenhum e são incríveis, e há muitos actores que têm muitos cursos e não têm o mesmo talento e a mesma qualidade. É difícil, porque é uma vida com pouca estabilidade no sentido em que somos trabalhadores independentes. Enquadrados na Lei do Trabalho, somos vistos como freelancers, iguais a qualquer outra área. Agora existe um estatuto de profissional da cultura, mas é uma coisa recente, ainda está meio cinzenta, não se percebe ainda bem os benefícios e o que é que aquilo ajuda, ou não, um artista. Não existe uma categoria para um actor, para um músico. É igual ser actor ou ser canalizador, ou seja, nós trabalhamos a recibos verdes, somos freelancers, trabalhamos quando há trabalho; quando não há trabalho não temos nada, não temos protecção social, não temos ordenado, não temos subsídio de férias, não temos subsídio de doença, não temos subsídio de desemprego. Passo um recibo, como se tivesse trabalhado naquele dia. Depois fico dois meses sem passar recibo. Tudo isto faz com que não seja fácil iniciar uma carreira como actor em Portugal. Mas esta é a parte, sobretudo burocrática e administrativa, que torna complicada esta ingressão na carreira de actor. Depois existem oportunidades de trabalho, poucas para muita gente que, se calhar, não tem acesso. Há muita gente que está a tentar começar e nem sequer sabe. Recebo muitas vezes pedidos de ajuda de miúdos que estão a querer ser actores e eu não sei responder muito bem porque, comigo, também foi um caminho que foi sendo traçado ao longo do tempo e foi um misto de sorte, oportunidade, estar no sítio certo à hora certa, aproveitar algumas oportunidades da melhor forma. E também não é o lugar para toda a gente porque, por mais que se queira muito ser actor, isso não chega. É preciso trabalhar muito, é preciso querer muito, é preciso abdicar de muitas coisas, abdicar de férias. Estive a trabalhar em Agosto, não fui de férias com a minha família. Não posso gastar o dinheiro todo de uma vez numa viagem porque não sei se para o mês que vem ou no outro a seguir vou ter dinheiro a entrar. Além de que há poucos sítios onde se pode fazer uma boa formação e ter aconselhamento para começar. E, depois, há poucas oportunidades de trabalho. É preciso batalhar muito para conseguirmos fazer um filme com visibilidade ou entrar numa novela.
Houve algum período em que sentiu que tinha de seguir outra estrada?
Senti várias vezes, mas nunca precisei de pôr em prática. Às vezes, as coisas acontecem por uma razão. E já tive fases não tão positivas, com menos trabalho e com menos perspectivas, e que fazem com que a pessoa fique desmotivada e comece a colocar tudo em perspectiva, a olhar para a vida e a pensar, será que vale a pena continuar a investir nisto ou será que vamos ter de encontrar um plano B? É uma coisa que vive um bocado sempre aqui no fundo da minha cabeça o facto de ter de haver um plano B, outra forma de ter rendimento mais ou menos fixo para não termos sempre este nó na garganta que muitas vezes aparece. Tenho a sorte de ser poupado e organizado em termos financeiros, e então consigo ter uma margem para estar sem trabalhar durante uns tempos e dar-me ao luxo de poder estar parado. Mas é uma coisa que me preocupa um bocadinho. Existem muitas fases em que pensamos desistir ou parar durante uns tempos e procurar outra coisa. Felizmente, nunca tive de o fazer, mas tenho várias alternativas preparadas.
E quais são essas alternativas?
Tenho um plano B que está constantemente cá: sou músico também - apesar de a música não ser muito melhor, também não existe muita estabilidade. Mas sempre pensei que, se precisar de dinheiro, pego na minha guitarra e em mim, que também canto, e vou tocar para um bar, para a rua, para fora, e acho que não vou passar fome. E tenho outras competências e hobbies em que posso investir. Gosto muito de cozinhar, imaginava-me a tirar um curso de hotelaria ou de cozinha.
Esteve no elenco das séries nacionais “Glória”, da Netflix, e “Três Mulheres”, da HBO. O streaming pode ajudar o actor português a ter mais currículo, trabalho e dinheiro?
Está a ajudar. À falta de investimento do Estado numa cultura pública temos, felizmente, muitas outras plataformas e empresas que, no fundo, fazem esse investimento pelo Estado. Penso que há uma iniciativa em Espanha que oferece benefícios fiscais a empresas que investem no audiovisual. É uma forma de o Estado, sem ter de abrir os cordões à bolsa, ajudar um bocadinho a produção audiovisual. A Netflix, infelizmente, não investe em teatro. Mas é uma forma. Se fizéssemos do estilo “quem vier produzir para Portugal tem um desconto nos impostos ou licenças mais baratas”, aí, para uma Netflix ou HBO, é muito atractivo vir para um país como Portugal, onde a produção é barata, comparando com outros países. Acho que é bom para toda a gente e louvo estas plataformas novas que apareceram porque, além de diversificarem muito o mercado, agora já não se produz só cinema em Hollywood, Inglaterra ou em França, produz-se cinema em todo o lado, basta haver condições para isso. E nós temos um país maravilhoso para filmar, é muito atractivo vir para aqui. Somos um país pequeno, viaja-se de uma ponta do país à outra em cinco horas de carro. Temos tudo à distância de duas horas: praia, serra, campo. Temos tudo. E é barato produzir cá. Os nossos salários são baixos, infelizmente. Posso sempre não aceitar mas, se sou chamado para fazer uma série na Netflix em Portugal, podiam pagar-me como pagam lá fora, mas estão a promover o meu trabalho, a promover a minha imagem, estou a ter uma oportunidade que não iria ter nunca. Portanto, sim, é óbvio que é sempre uma mais-valia quando acontece esse investimento. Outra coisa boa de salientar nas plataformas é que abriram um bocado o mercado em termos da imagem do actor. A Netflix faz séries sobre todo o tipo de pessoas e, antes de aparecer a Netflix e estas novas plataformas, a coisa dava-se sempre um bocado estereotipada. A protagonista tinha de ser sempre uma mulher bonita e esbelta. Não podia ser gordinha ou feiinha. O protagonista tinha de ser sempre musculado. Só se mostravam essas partes da sociedade e a Netflix veio mostrar o normal. Veio mostrar o feio, veio mostrar o grotesco, veio mostrar o fora da norma. Toda a gente tem lugar e as pessoas identificam-se com esses personagens que não são todos iguais e bonitinhos. Existem pessoas de todos os tipos e é mesmo importante que, nas séries e nos filmes, se reflicta a sociedade que nós temos, e a Netflix não tem medo de fazer uma série com um protagonista diferente do normal que estamos habituados a ver. Inclui toda a gente, e isso é óptimo.
Acha que devia haver aqui uma espécie de urgência por parte do Governo de fazer acordos com essas plataformas?
Acho que sim, só se ganha. É uma iniciativa que valoriza o nosso país, valoriza a nossa cultura, dá oportunidades de trabalho a muitas pessoas que não têm tantas oportunidades. Por exemplo, a série “Rabo de Peixe”, que está a estrear-se agora. Passa-se nos Açores e é baseada em factos reais, estamos a contar uma história que se passou em Portugal, mais ou menos ficcionada, mas que vai mostrar Portugal lá fora, vai mostrar os Açores. As pessoas, quando vierem visitar os Açores, vão reconhecer e dizer que foi ali que se passou a série da Netflix. Vai atrair turismo, mais pessoas, mais produção. Toda a gente tem a ganhar, incluindo o Estado, se investisse nisso.
No cinema entrou em filmes de época que retratam histórias verídicas dos anos 80 como “Variações”, “Snu” ou “Ruth”. Há um padrão na forma como escolhe os seus projectos?
Uma linha condutora?
Exactamente.
Acho que é pura coincidência. Também já fiz “Os Filhos do Rock”, que se passa nos anos 80, e as “Três Mulheres”...
Só me está a ajudar.
[risos] É verdade. Se calhar, tenho cara de anos 80 ou anos 70. Atribuo muito esses trabalhos ao meu nariz. Estou a brincar mas, se vir o meu perfil, tenho um nariz de época, que herdei da minha avó, e acho que já me trouxe muito trabalho. Agora a sério, não acho que tenha havido uma escolha propriamente. Adoro fazer séries de época. Quase todas elas são baseadas em acontecimentos reais. É um acaso. O “Ruth”... sou muito amigo do António Botelho, o realizador. Ele ligou-me, tinha um personagem para mim e disse: “Queres fazer? É o Abel dos Correios.” E eu: “Quero, claro. Vamos para Moçambique filmar, não há nada que goste mais do que viajar para trabalhar.”
Já entrou em trabalhos com o seu pai, João Lagarto. Gosta?
Claro. Até agora tem corrido sempre bem. Pode ser que não corra algum dia, mas não há razão para não correr. Temos uma relação de pai e filho em casa, mas no trabalho temos uma relação de colegas. As coisas não se misturam muito mas, se estamos a filmar alguma coisa, não vamos deixar de ser pai e filho ou fingir que não somos nada disso. Mas somos colegas e, como colegas, temos uma relação muito gira. Como pai e filho, também. O meu pai é uma pessoa divertidíssima a trabalhar, se perguntar a quem quer que seja é o que lhe vão dizer. Temos uma confiança muito grande quando trabalhamos juntos e temos um à-vontade enorme e divertimo-nos imenso nos bastidores. E, depois, o trabalho é igual. É igual ser ele ou outro qualquer colega. A cumplicidade que existe faz com que a coisa seja muito divertida. Acho que é normal termos já trabalhado juntos, não porque exista um interesse especial em ter um pai e um filho numa rodagem, mas por razões óbvias. Eu já fiz várias vezes o mesmo papel dele em novo, por exemplo. Faz todo o sentido. Sou actor, ele também, e somos parecidos um com o outro.
Houve alguma influência paternal para seguir a carreira de actor?
Não, não directa. Não houve nunca influência directa da parte do meu pai para que eu seguisse. Pelo contrário, até acho que me aconselhou mais a ter calma e a perceber bem se era isto que eu queria, porque ele próprio já passou por situações difíceis. Nunca houve uma conversa em que ele dissesse “anda, vem fazer, anda experimentar”. Pelo contrário, sempre me deixou estar na minha. Agora, houve uma influência indirecta enorme e indiscutível, porque eu desde miúdo que sou fã do meu pai. Desde miúdo que me fascina o que ele faz. Adorava vê-lo no teatro, adorava vê-lo na televisão, e ia sempre com ele. Sempre que podia ia com ele para o teatro à noite. Das melhores memórias que guardo do meu crescimento é estar no camarim do Teatro Aberto, nos anos 90, com o Canto e Castro, enquanto ele não entrava em cena. São coisas que guardo para a vida. Ou estar a assistir ao espectáculo ao lado do ponto, numa altura em que ainda havia um ponto que apontava o texto dentro do palco, e eu estava ali ao lado. Aprendi muita coisa assim, miúdo, com oito anos, a ir com o meu pai para o teatro e a vê-lo nas filmagens. Essa influência indirecta foi muito forte. Pensava: “Quero ser, quero fazer.”
Qual é a personagem que ambiciona fazer e ainda não fez?
Ui, não sei. Já fiz muitas que não ambicionava fazer e que foi incrível fazer. Jorge Palma foi uma coisa incrível, um bombom maravilhoso de que, ainda hoje, as pessoas falam. Nunca imaginei que fosse fazer o Jorge Palma em novo e foi incrível. Para a frente... não sei. Cada caso é um caso. Às vezes temos uma ideia de uma personagem e depois, na verdade, se calhar, dependendo do projecto, do realizador, a pessoa que dirige não vai para o caminho que nós imaginámos.
E qual é o actor ou actriz com quem gostava de contracenar e isso nunca aconteceu?
Tenho vários. Sou fã de vários actores estrangeiros e nacionais mas daí, depois, a trabalhar ou não trabalhar com eles... Há um actor com quem trabalhei quando tinha seis anos e que foi o João Perry, um extraordinário actor.
Como está a sua carreira de músico?
A minha vida de músico tem sido sempre uma coisa paralela à representação. Nunca passou para a frente, apesar de eu sempre ter dito que, se algum dia um dos meus projectos musicais tivesse saída, se se tornasse possível viver daquilo... não que desistisse de ser actor, mas assumiria que, naquele momento da minha vida, era aquela a minha actividade e talvez recusasse outras coisas. Isso já esteve muito próximo de acontecer porque já tive alguns projectos musicais, dos quais fiz parte, que estiveram à beira de se tornar mais mainstream. Tive uma banda de reggae no início dos anos 2000. Ainda tocámos em vários festivais e teve alguma aceitação do público, e depois tive um projecto bem grande chamado Brass Wires Orchestra, uma banda incrível. Modéstia à parte, amava mesmo aquilo, não só do ponto de vista de músico, mas como ouvinte. Adorava a música que fazíamos. Essa experiência foi das mais marcantes da minha vida porque estivemos mesmo próximos de ser uma banda que podia ganhar prémios, abrir concertos grandes, etc. Tocámos em todos os festivais, o Alive, Paredes de Coura, em todo o lado. Temos dois álbuns gravados que estão no Spotify. Mas acabou, infelizmente. Quer dizer, pausou. Nunca se sabe se volta. Parou por questões internas e porque cada um tinha as suas vidas. Neste momento tenho um projecto com a minha mulher, que se chama Brie, e o projecto tem o mesmo nome. Foi um projecto que surgiu na pandemia. Ficámos os dois fechados em casa, em confinamento. Ela canta muito bem, escreveu umas letras, compôs umas coisas. Fizemos 15 músicas, ela escreveu várias letras. Vinha ter comigo, eu pegava na guitarra, musicava, fazia uma harmonia básica. Fomos gravando e temos agora 15 demos, estamos a começar a produzi-las profissionalmente. Já temos um tema lançado e mais três encaminhados para lançar e estamos a preparar um álbum. Esperamos que um dia nos possam ouvir a tocar aí num palco qualquer. Era o nosso desejo.