A incandescência do cinema japonês por descobrir

Três filmes de 1955 nunca antes estreados fora do Japão chegam a Portugal não só para sublinhar o cinema ainda por tocar no Ocidente como também para assinalar a urgência de uma linha de programação mais exclusiva na idade da democratização das imagens. De 4 a 10 Novembro no Cinema City Alvalade, em Lisboa, e de 11 a 17 Novembro no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto, o ciclo “Mestres Japoneses Desconhecidos” maravilha e explora o papel da mulher durante o pós-guerra. O NOVO falou com o programador Miguel Patrício.

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Pensar em programação de cinema no auge do streaming é pensar num cinema ainda por localizar. Com a democratização das imagens, processo que tem vindo a exponenciar-se na última década, cresce a ampla disponibilidade de um mapa cinematográfico nos vários catálogos das plataformas, já para não falar dos muitos outros confins da Internet. É caso para dizer que o papel do programador enquanto mediador pede agora, mais do que nunca, a tracção da descoberta. O ciclo que chega este mês até Lisboa e Porto não só o exemplifica como concretiza. Propondo obras dos esquecidos Tomotaka Tasaka, Kôzaburô Yoshimura e Tomu Uchida daquela que foi a idade de ouro do cinema japonês (“só em 1956, foram produzidas 587 longas-metragens no Japão”), é-nos oferecido um outro olhar sobre a modernidade avistada nas sequelas do pós-guerra, filmes que se juntam aos delicados melodramas que apareceram em 1955: “Os Amantes Crucificados”, de Kenji Mizoguchi, e “Nuvens Flutuantes” de Mikio Naruse, ambos retratos de agonia e exercícios na intensidade da expressão que acabam por resvalar em tragédia.

“Fazia todo o sentido uma proposta de programação que demonstrasse a cinematografia japonesa a uma nova luz e achei interessante a coincidência do ano, porque isso acentua ainda mais a variedade do cinema a ser feito no mesmo ano e no mesmo estúdio (Nikkatsu). É um jogo de diferenças e semelhanças que acho que acaba por abrir a cabeça”, contextualiza Miguel Patrício, programador, crítico e especialista em cinema japonês, com o brilho nos olhos do cinéfilo arrebatado que tira do seu “quarto” o cinema que quer ver projectado em salas escuras com outros espectadores. Um romantismo que sobressai não só nas escolhas de filmes, mas no processo que as antecedeu. “A programação foi feita em media res. Os filmes eram impossíveis de adquirir. Mas a minha cinefilia no que diz respeito ao Japão foi sempre feita um pouco assim..eu apaixonar-me por filmes que nunca vi, por frases de um crítico ou por um fotograma perdido num livro e imaginar como é que os filmes são. Pode dizer-se que este ciclo nasceu de um caso de amor entre mim e informações dispersas sobre os filmes.”

Em três delineados e decisivos actos, o ciclo desenha-se no feminino com um arco narrativo que parte das histórias de teor humano, shomin-geki, amostras miniaturistas das lutas das pessoas comuns e puras na sua depuração de comentário socio-cultural, e que se vêm mais tarde a evidenciar enquanto filmes que batalham contra a contaminação de forças exteriores. “O Menino da Ama”, de Tomotaka Tasaka, é o claro primeiro acto não só por se encontrar na sombra da tradição do realismo acentuado de Yasujirō Ozu (com composições menos rigorosas), mas porque vive num mundo apresentado através de detalhes e objectos que se conduzem por uma espiral de micro-eventos fora em direcção a um final irreparável. Entre a ousadia e a lucidez, uma jovem rapariga viaja da quinta onde cresceu, aninhada nas montanhas, até Tóquio para oferecer os seus serviços enquanto empregada de limpeza e ama para uma família burguesa. Quando lá chega, depara-se com a falta de sabedoria associada à ausência de ancestralismo e sentido de comunidade. Sob o expressionismo do que poderiam ser imagens extraídas de um filme mudo, é a discussão entre os rabanetes e as salsichas, as jovens mulheres do campo e as da cidade, e o amor nutrido por um cão que cimenta um sentimento de união num filme sobre pequenos conflitos e mal-entendidos, encandeado pela luminescência da interpretação da actriz Sachiko Hidari.

Segue-se “Mulheres de Ginza”, de Kôzaburô Yoshimura, um filme onde também reside o conflito entre o campo e a cidade, sendo uma das personagens uma jovem de tenra idade, aprendiz de geisha, oriunda de uma área agrícola também ela a passar por uma depressão. Neste segundo acto – bem mais grave que o primeiro –, denota-se a exploração da amargura de um grupo de mulheres, geishas de luxo, todas elas provenientes de outras paragens num filme que se entrega enquanto uma exposição de género, mas habita uma severidade pictórica. Mais livre na sua estrutura gramatical do que o anterior, é marcado por um evento que questiona todas aquelas mulheres e os seus desamores, e tem em si um personagem, um rapaz escritor, que faz borbulhar a psique do abismo pós-guerra, depois de tanto tempo escondida atrás da leveza do tom do filme.

É dada continuidade a tal em “Cada um na sua Cova”, de Tomu Uchida. Nas palavras de Miguel, o “filme mais lúcido do ciclo no que diz respeito aos papéis de género”, este terceiro acto é o perfeito dispositivo para o estudo da mulher e da sua impotência dentro das estruturas da sociedade japonesa. Ummelodrama cáustico, enquadrado numa nova vaga do cinema japonês, segue a heroína auto-destrutiva numa sucessão de planos filmados através de espelhos ou enquadrados por janelas e portas que só inflamam a indecisão e os muitos ziguezagues que pairam pelo filme fora. Invadindo o ecrã com o som dos aviões que sobrevoam um país ainda em reparação, há que consagrar o niilismo da sua narrativa a uma luta maior, aquela entre o Japão e a ocupação Americana.

Assim, da narrativa pacata que se constrói por cima do dia-a-dia ao filme de auto-crítica “que se faz na desconstrução”, já dizia o programador, passando pelo filme de género agridoce, a tradição desvanece para dar lugar às dissonantes manifestações de instabilidade interior. Através destas, a análise que é a programação de cinema feita aqui salta para fora, onde se vê iniciado o trabalho em Portugal de “tirar o Japão desta insularidade tremenda”. Nada mais do que estas propostas encantatórias para cairmos em nós de que, num universo clássico adjacente àquele de Ozu, Mizoguchi, Kurosawa, Naruse e em raros momentos Shimizu, há ainda tanto mas tanto cinema japonês para encontrar.

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